EXPRESSION ÉCRITE

Que fazer enquanto Luanda arde ?

Em Os Transparentes, o escritor angolano Ondjaki abraço a descontrução moral de Luanda, filha da globalização mas também das relações de poder.

Não é só marketing, a bolinha-autocolante que, na capa d’ Os Transparentes, o mais recente romance de Ondjaki (editora Caminho), diz que este é «um reirato poderoso da Luanda de hoje». Luanda tem sido personagem principal de uma história da literatura angolana ainda por contar, e Ondjaki admite inscrever-se nessa linhagem: de Luandino Vieira a Manuel Rui, falar da capital é falar também de Angola, falar de migrações internas, em diferentes dialectos, falar de privações, de dificuldades, de luxos e extravagâncias, de relações hierárquicas, de corrupção e poder, nessa «realidade tão acelerada» que ultrapassa as possibilidades da ficção.

“Quero questionar que rumo queremos, todos, cidadãos de Luanda, para aquela cidade. Não só rumo político e social, mas também do ponto de vista da ecologia, da arquitectura, do espaço público: há uma desconstrução moral que deriva da globalização. mas há também uma desconstrução da moral que é local”, diz Ondjaki ao Ípsilon.

Aqui estão, portanto, os transparentes [título do romance]. Translúcidos, através dos quais podemos ver o mundo (Angola). Invisíveis, caminham sob o sol abrasador ou a humidade insuportável na labuta da sobrevivência. Cristalinos, como a água que jorra em golfadas do fundo do prédio da Maianga.

Água potável, em segredo, água, enfim, quando água é o que falta na cidade.

«O retrato da Luanda de hoje passa por falar de certas pessoas que são transparentes. E não é um exclusivo de Angola: a transparência de que eu falo, o facto de os pobres serem transparentes. Em Portugal, os pobres também são transparentes. São transparentes porque ninguém os vê, ninguém quer saber deles, excepto na época das eleições », explica Ondjaki. São sem-voz, anónimos, «essa maioria pobre, que não conta, porque os políticos só precisam deles na hora de votar». […]

É aqui que entra o humor, o chiste quotidiano da luta. O saber rir de si, dos problemas, das dificuldades. A sobrevivência está já na linguagem: «O humor coincide com a minha maneira de ler Luanda. Podia seguir uma escrita muito mais pessimista e muito mais desencantada. Não deixaria de ser legítima. Mas esse humor aproxima-se um pouco do real: isto é fantástico no povo angolano, a maneira de contornar as dificuldades.» Mais do que fazer crítica social através da linguagem, isto é dar conta do lado teatral da cidade que atravessa o dia-a-dia dos luandenses: « A vivência da linguagem em Luanda é muito permeável, criativa, muito arrojada. Luanda é uma cidade muito teatral: pelo ritmo, que tem a ver com a dança mas também com a palavra. Todas as semanas surgem palavras novas, termos, danças e música. Não é uma sociedade estática. E, sim, o humor é uma grande arma, e também é auto-defesa.»

Há, portanto, uma fictícia prospecção on-shore de petróleo em Luanda – será por isso que falta a água? – e a corrida ao ouro negro vai desencadear uma série de peripécias, pela «mesma troika de sempre» (Angola, EUA e Rússia – «então e os tugas (1) não mamam desta vez?»), ao mais alto nível (científico, corporativo, ministerial), ao nivel intermédio (jornalístico, de assessoria), e ao nível térreo (os tais luandenses transparentes).

E, depois, há um gigantesco incêndio que destrói (apocalipse?) e regenera a cidade. Em Quantas Madrugadas Tem a Noite, Ondjaki já tinha recorrido a um fenómeno catastrófico para regenerar Luanda. Aqui, um incêndio. Curiosamente, estamos já longe dos livros autobiográficos da « infancia enquanto lugar », do espaço nostálgico « de um tempo que vive de afectos », como em Bom Día Camaradas ou Os da minha rúa, a outra Luanda da infância, dos anos 80, dos professores cubanos, «a Luanda que fícou impregnada na pele».

Esta pele de Os Transparentes é diferente. É já uma cidade que tenta reinventar-se, pensar-se a si mesma, encontrar o seu lugar. «Em Luanda não há mais tempo: ou estás no trânsito para ir para casa, ou estás no trânsito para ir trabalhar, ou estás com a preocupação, como é uma cidade cara, de como é que vais ganhar mais dinheiro. Ninguém pára para reflectir sobre a cidade. É esta também a proposta que faço ao nível do próprio incêndio: que Luanda, como cidade, se pense.»

É, afinal, o petróleo (ou a sede de petróleo e não de água) que provoca o incêndio? Ondjaki pára e responde: «É tão velha essa lição: cuidado ao brincar com o fogo. Pode ser que alguém esteja a brincar com o fogo em Angola. E pode ser que Luanda reaja mal a essa brincadeira. Com que fogo é que estamos a brincar? Podemos estar a brincar com a paciência, com a dignidade das pessoas. Só o tempo dirá. Não se pode brincar assim como se não houvesse consequências. Acredito que ou a natureza ou a cidade se encarregará de resolver as coisas.»

Entrevista do escritor angolano, Ondjaki, por Raquel Ribeiro,

Público, caderno de cultura « Ipsilon », 9/11/2012

(1) argot, pour « portugais ».

Répondre aux questions suivantes en portugais (250 mots pour chaque question) :

1. O texto é uma entrevista do escritor angolano Ondjaki, que fala do seu último romance, Os Transparentes (Caminho, 2012). Apresente o tema do livro e o que pretende fazer Ondjaki.

2. O texto abre com a afirmação da jornalista Raque! Ribeiro : « Ondjaki abraça a desconstrução moral de Luanda, fîlha, da globalização mas também das relações de poder ». Ondjaki afirma, nuni passo da entrevista « O retrato da Luanda de hoje passa por falar de certas pessoas que são transparentes. E não é um exclusivo de Angola ». Discutir estes elementos, e o papel da cidade, hoje, como retrato (possível) da invenção e/ou reinvenção da sociedade ?

Traduction de Français en Portugais

Luanda, capitale des extrêmes

Moins tentaculaire que Lagos, moins violente que Johannesburg, plus métissée que Kinshasa, cette ville méconnue, caractérisée par une grande désorganisation, ne ressemble à aucune autre sur le continent. Sortis des quelques grands axes de circulation, ce ne sont que de simples rues, pas asphaltées quand on s’enfonce dans les quartiers. […] Un tel foisonnement rend la ville difficile à comprendre.

Capitale de l’Angola, Luanda règne en maître sur un pays encore très rural et plus de deux fois plus vaste que la France. Cette concentration a sa traduction spatiale. Le centre-ville rassemble la cidade alta, avec le palais présidentiel, la forteresse São Miguel et le nouveau
Parlement, et la [cidade] baixa, avec les édifices des ministères et les sièges des majors pétrolières. Mais le tableau du centre-ville serait incomplet sans un dernier élément : un front de mer rénové, la baie de Luanda, avec espaces verts, palmiers, terrains de basket et jeux pour enfants sur plus de deux kilomètres. Des mois de travaux ont permis de transformer un endroit mal fréquenté en un lieu de promenade où se côtoient Noirs, Blancs, métis et Asiatiques. Cette réalisation est devenue la vitrine de la reconstruction du pays.

Estelle Mauson, Afrique Magazine, 11/03/2013 [texte adapté]

Traduction de Portugais en Français

Luanda é das mais antigas cidades do nosso país, já foi no passado, avaliada como uma das mais belas urbanizações do nosso continente, e não é por acaso que ela foi eleita. ainda no contexto da colonização portuguesa, para capital, ou seja, o centro político, administrativo, económico e religioso da então colónia de Angola. […] O desenvolvimento do comércio de exportação, principalmente de escravos (do século XVI até ao XIX), e depois o petróleo a partir dos anos 60 do século passado, foram factores determinantes para o crescimento da população e da cidade.

As construções mais notáveis desses tempos acabaram por desaparecer, uns devido à acção do tempo e outros em virtude dos vários atentados, que vão desde a sua destruição pura e simples, até a incorporação de materiais inadequados ou maquilhagens desnecessárias que provocaram profundas transformações na paisagem da cidade.[…]

Conclusão, os monumentos, símbolos da nossa história, desaparecem a cada dia, enquanto o vandalismo e o desrespeito aumentam. [ .. ]

Não temos dúvidas que há necessidade de se promover a melhoria da qualidade de vida da população. Porém, a qualidade de vida não é garantida apenas por um conjunto de bens artificiais. Esta é também inerente a um conjunto de valores e bens que temos a obligação de preservar e o direito a desfrutar. Está implícito, deste modo, um conjunto de obrigações materiais e éticas a que estamos obligados e de onde destacamos o respeito pelos lugares de memória e pela identidade colectiva dos cidadãos.

Emanuel Caboco,

Cultura, jornal angolano de artes e letras, 7/02/2014