EXPRESSION ÉCRITE

O lugar de Eusébio no Estado Novo[[Estado Novo – (État Nouveau), expression désignant le régime en place au Portugal de 1933 à 1974 (date de la Révolution des Œillets). La figure centrale du gouvernement de l’Estado Novo est Antonio de Oliveira Salazar]]

No Portugal dos anos 60, abundavam as imagens de Eusébio da Silva Ferreira.

Ele aí estava, espalhado por jornais e revistas, mas também em programas e serviços noticiosos da Radiotelevisão Portuguesa. Atleta do Benfica e da selecção nacional, sempre na sua função de jogador de futebol, era aclamado pelo seu inegável talento. No Portugal metropolitano de então, onde rareavam ainda os naturais de África, nunca um negro merecera tanto destaque e fora objecto de tamanha glória. Uma representação destas distinguia-se da imagem do africano, que proliferara na cultura popular. Como demonstrou Isabel Castro Henriques (A Herança Africana em Portugal, ed. CTT), o negro era quase sempre ridicularizado com evidente crueldade, em livros, imagens, jornais, bandas desenhadas, campanhas publicitárias e anedotas. A construão de um outro tipo de africano, fundada numa distância que permitia as maiores efabulações, só tomou um sentido mais concreto durante a guerra colonial, onde o africano era o inimigo.

Desde os seus primórdios, o Estado Novo1 contribuirá decisivamente para a disseminação de um racismo generalizado, garantindo-lhe até um carácter científico. Em exposições e congressos, nos trabalhos de diversas ciências coloniais, e em muitas publicações oficiais, expunha-se um outro africano culturalmente diferente, que fazia parte integrante do império português, mas que era colocado à parte, como se se tratasse de um todo racial e cultural discrepante. O império afirmara o atraso civilizacional das populações africanas, legitimando assim urna conquista colonial anunciada como uma missão de desenvolvimento destas regiões e dos seus povos. […]

A autobiografia de Eusébio, publicada em 1966 em Portugal e redigida por Fernando G. Garcia a partir de um conjunto de entrevistas (traduzida em inglês no ano seguinte), conta a história de um « bom rapaz », narrativa mestra e memória oficial a partir da repetida em jornais, biografias e bandas desenhadas. […]

A apropriação oficial da imagem de Eusébio não anulava os efeitos produzidos pelo facto de um negro se ter toenado uma figura dominante da cultura popular portuguesa. Eusébio entrou, tal como a fadista Amália, num universo de glorificação cultural até aí constituído por indivíduos com origens e percursos muito distintos, consagrados em actividades oficialmente legitimadas e de onde o futebol e o fado se encontravam afastados.

Apesar do reconhecimento do seu mérito, a apreciação entusiástica que mereceu não resultava de uma inusitada consciência de igualdade racial, tão-pouco poderia servir de prova de que a sociedade portuguesa estava preparada, devido a uma característica cultural adquirida, a aceitar a diferença. A relevância de Eusébio dependia do seu valor enquanto elemento de uma economia particular, no contexto de uma troca muito específica, proporcionada pelo processo de profissionalização do futebol. O jogador mozambicano oferecia quase todas as semanas capitais preciosos à representação nacional mas sobretudo clubista, a uma específica cidadania exercida diariamente por muitos indivíduos, quase todos homens, durante incontáveis encontros, conversas e imensas retóricas, nos quais se manifestava uma identificação, uma forma de apresentação na vida de todos os dias. Os que no campo representavam com o seu génio desportivo esta pertença (ser do Benfica, do Sporting, do Porto, ou da selecção) mereciam quase todas as recompensas, independentemente da sua origem ou da cor da sua pele. O valor de Eusébio nesta economia particular dependía da manutenção de um nível performativo constante, de um ritmo laboral intenso, com consequências físicas conhecidas, como asseveram as inúmeras cirurgias ao seu martirizado joelho.

As exibições no Mundial de 1966 ampliaram a reputação de Eusébio, oferecendo-lhe uma dimensão global. Este enorme atleta, personagem principal de uma cultura de consumo em expansão que gerava novas identificações, juntou-se à memória visual colectiva de uma geração, ao lado de outros ícones da cultura popular dos anos 60. […]

É intéressante verificar que nas últimas décadas Eusébio veio a tornar-se objecto de interesse para os estudiosos do continente africano, entendido como um pioneiro do futebol em África, um exemplo de talento extraordinário e, simultaneamente, ao lado de outros grandes nomes negros da história do desporto internacional, nomeadamente norte-americanos, desde Joe Louis a Jesse Owens, alguém que vingara num mundo fortemente discriminatório. O desejo de alguns académicos e jornalistas estrangeiros em encontrar no discurso de Eusébio posições emancipadoras e politizadas esbarrou quase sempre em respostas evasivas e no habitual refúgio no mundo do futebol. Na verdade, o universo que ele, desde pequeno nos espaços livres da Mafalala, aprendera a dominar. Para aquele que foi considerado, depois do Mundial de 1966, como « o melhor da Europa », e de quem se falava estar a disputar com Pelé o título de « rei do futebol mundial », África e a política africana estavam muito longe. […]

Explicada pela conjugação única entre a profissionalização do futebol e a procura de talentos, a força da cultura popular mediática e um regime que necessitava de defender por todas as formas o mito do pluri-racialismo lusófono, a carreira extraordinária de Eusébio não belisca a imagem pérfida do sistema colonial português. Tão-pouco deve servir de modelo para descrever, hoje, as relações raciais em Portugal.

Público, 21/08/2013

Artigo de Nuno Domingos

Investigador do IÇS-Universidade de Lisboa (Texto adaptado)

Répondre aux questions suivantes en portugais (250 mots pour chaque question) :

1. Apresente as grandes linhas do texto que o investigador Nuno Domingos dedica ao jogador de futebol Eusébio

2. Nuno Domingos questions a professionalização do futebol, a força da mediatização e o seu impacto sobre a cultura popular. Que pensa dessa tomada de posição? Tente discutir e aprofundar esse parecer, com exemplos devidamente articulados.